Início da tarde . Da janela do avião, casas sem teto e o mar sem azul de tanto engolir rios de lama e esgoto. O encontro das águas no país mais miserável do novo continente leva a uma completa revisão de conceitos. Não parece o Caribe. O Haiti choca antes mesmo da aterrisagem.
“Eu costumo dizer que a gente acha que tem um determinado problema no Brasil, e depois que passa por aqui, vê as áreas degradadas, uma população num estado de miséria na nossa área de operações, com certeza esses valores são reavaliados e aqueles problemas que a gente achava que tinha no Brasil não são problemas”, reflete o comandante do batalhão brasileiro na Minustah, coronel Pedro Antonio Fioravante.
O primeiro item da programação da recém chegada comitiva do Ministério da Defesa é uma visita a Citè Soleil. O bairro, até o ano passado considerado o mais violento do mundo, foi o último a ser "pacificado" pelas forças da Minustah. Ao contrário do que acontece no Brasil, os pobres ficam à beira-mar, a região menos valorizada, por ser onde alaga quando chove muito. É assim que várias partes estavam quando passamos, uns 20 dias depois do último furacão.
“O que você tem ali é uma população que precisa de desenvolvimento, precisa de emprego, das coisas normais que todo mundo quer, que é o emprego, a escola, a moradia, alimentação, saúde, isso é o que todo mundo quer, em qualquer lugar do mundo, e que ali não tem condições, com um índice de desemprego altíssimo”, diz o comandante das forças da missão de paz, general Carlos Alberto dos Santos Cruz.
Hoje já é possível entrar em Soleil sem capacete ou colete a prova de balas, coisa impensável um ano e meio atrás, quando os soldados eram recebidos a bala pelas gangues armadas. Mas ainda não podemos dispensar a escolta armada com fuzis, nem nos afastar muito, pois estamos perto do final da tarde e ficar para trás significa não ter como voltar depois, pois não há transporte nem energia elétrica. À noite, se instala o breu.
O local é a tradução da falta de condições de higiene no país em que apenas 30% da população têm acesso a saneamento básico e cerca de 54%, a água tratada, segundo a ONU. As pessoas se lavam e comem com água que se mistura facilmente ao esgoto que sai das casas. O relacionamento com o lixo é tão indigno quanto, pois só agora um serviço mínimo de coleta está voltando a funcionar, pelo que os soldados contam.
Considerado o país mais pobre e menos desenvolvido das Américas pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), o Haiti tem um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,529 numa escala que vai de 0 a 1 - o do Brasil, por exemplo, é 0,8. A população é estimada em 9,3 milhões de pessoas, 65% vivendo abaixo da linha de pobreza e 53,9%, com menos de US$ 1 por dia.
O Produto Interno Bruto per capita é de US$ 1.635 – contra US$ 8.195 no Brasil, por exemplo. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a expectativa de vida ao nascer é de 59 anos e a taxa de mortalidade em crianças com menos de cinco anos chega aos 105 por mil nascidos vivos, ou seja, mais de 10%.
“Esse é um país que precisa de tudo”, resume a embaixatriz brasileira em Porto Príncipe, capital haitiana, Roseana Kipman. E não bastassem os indicadores socioeconômicos, o país ainda está na rota de diversos furacões – em torno de 20 por ano, entre os meses de julho e outubro.
“E esse povo que dorme em casas que não têm janela, mal têm uma porta, quando a água entra e leva o barraco... não é uma cidade, isso não é uma cidade, e não se pode falar em favelas, tem algumas casas no meio de coisa nenhuma”, lamenta a embaixatriz.
Toda essa carência pode ser sentida pelas ruas de Citè Soleil. Diferentes em tudo, na cor da pele especialmente, nós, estrangeiros, chamamos a atenção especialmente das crianças. Elas não hesitam em vir para junto de nós. “Hey you”, dizem para chamar a atenção. Nos cercam, querem saber quem somos, de onde somos, nossos nomes, se temos filhos, os nomes deles. E não falta o pedido de comida, dinheiro, socorro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário