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31 maio 2010

Observações

1 - leia essa série de textos publicados em maio não do mais recente, mas do mais antigo. Se não vou parecer uma louca...

2 - pretendia colocar os links para o que chegou a ser publicado na Agência Brasil ainda em setembro de 2008 (uma dando conta da renovação do mandato da Minustah, outra da situação em Gonaíves), mas a ABr mudou de página e não consegui recuperar nenhum arquivo do que foi publicado (sim, como saí de lá antes da mudança, estou sem portifólio nenhum!)

3 - alguns textos complementares ainda tenho. Confesso que não sei dizer o que foi de fato publicado ou não, mas acho que o que eu tenho não chegou a ir pro ar... vamos ver...

Por enquanto, é isso!

Cozinha do Inferno

No segundo dia no Haiti, 24 de setembro, fomos conhecer um local ainda mais caótico e chocante do que Citè Soleil, que os soldados brasileiros chamam de "cozinha do inferno". É um mercado informal, que ocupa não só calçadas, mas também as ruas, onde pessoas confundem-se com mercadorias e carros.

"Cozinha" porque o que mais se vende (no meio de uma infinidade de coisas que vão desde remédios até cadernos escolares e malas para viagem) é comida, incluindo os biscoitos de argila, que eles comem na falta de outra coisa menos indigna. Dizem que é nutritivo... "Do inferno" pelo caos de gente, carros, cestos, banquinhas, lama, esgoto, lixo. E nós com colete a prova de balas e capacete.

Existe também um mercado público construído pelo governo da Venezuela, que custou quase US$ 2 milhões e tinha sido inaugurado nove dias antes. Enquanto centenas de ambulantes ocupavam o espaço, parcialmente alagado (difícil dizer se por água mesmo, por esgoto, ou os dois misturados), em frente ao mercado, lá dentro nenhum dos boxes estava ocupado.

As vendedoras contaram que o aluguel do espaço é tão caro, que só quem tem uma grande quantidade de mercadoria para vender consegue pagar. Assim, sempre que tentam entrar lá, são expulsas a pancadas pelos homens da Polícia Nacional.

São inúmeras as violações dos direitos humanos. Mas o general Santos Cruz, force commander da Minustah, é taxativo: "A missão aqui não tem nenhuma condição de promover desenvolvimento, a não ser criar um clima de estabilidade e favorecer o governo".

Santos Cruz argumenta que a ação da tropas é apenas uma das ferramentas para garantir os direitos do povo haitiano. "Quando você controla, leva condição para o governo chegar lá, para a polícia chegar lá, você participa do trabalho policial, põe pressão em cima desse pessoal, é pra tudo isso, evitar que as pessoas sejam roubadas, sejam sequestradas, estupradas, assassinadas, [permitir] que as escolas funcionem. Isso é direitos humanos na prática".

De acordo com o general Augusto Heleno¹, o primeiro comandante das tropas da Minustah, em 2004, mais do que a garantia do ambiente seguro, existe uma prioridade para ações humanitárias, quando necessário. Ele lembra da opção feita no ano em que ele chegou, de se enviar as tropas para a ajuda humanitária em Gonaíves, o que acabou possibilitando o fortalecimento das gangues na capital do país, Bel Air, Citè Soleil e Citè Militaire.

"Hoje a nossa presença efetiva com pontos fortes dentro dessas favelas impede que aquela situação [de predominância das gangues] seja retomada, mas de qualquer maneira, quando a gente deixa de patrulhar, de estar presente, fatalmente nós vamos ter um agravamento na situação de segurança, aumento de seqüestros, de roubos de veículos; mas eu digo que entre trabalhar na ação humanitária e trabalhar na repressão ao crime, primeiro vamos para a ação humanitária e depois vamos cuidar do crime".

Uma das coisas que têm sido feitas pela ONU, de acordo com o segundo homem no comando da missão, o brasileiro Luiz Carlos da Costa, uma das prioridades, aliás, é a reestruturação da Polícia Nacional do Haiti (PNH), a formação de uma polícia estruturada, honesta, profissional. Mais ainda precisam chegar nos 14 mil homens, número considerado suficiente no momento.

No entanto, a missão não tem um projeto de desenvolvimento, de reconstrução ou mesmo de reflorestamento - hoje em dia o Haiti tem 2% de cobertura vegetal. E às vezes a população não consegue, segundo palavra de Costa, enxergar que nem tudo depende dos soldados estrangeiros.

“Nós não temos um papel no desenvolvimento do país, nos investimentos econômicos, a população não entende isso, eles perguntam aos nossos soldados, então nós precisamos fazer um melhor trabalho de explicar o que nós não somos, o papel dos outros, que podem modificar, trazer uma melhora para a sociedade”.
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1 - Tivemos oportunidade de entrevistar o general Augusto Heleno no retorno do Haiti. Tivemos uma escala técnica em Manaus, para reabastecer e deixar os que ficavam por lá, alguns oficiais e a equipe da Rede Globo. Ele fez uma visita à aeronave, um C-99 da FAB e fez a gentileza de conversar com os repórteres, apesar do pouco tempo disponível e do barulho das turbinas logo ao lado.

28 maio 2010

A Minustah

O contato também é intenso com os soldados. Vale lembrar que a Minustah, assim como missões anteriores da ONU, foi para o Haiti não por causa dos indicadores sociais, mas por causa de convulsões populares, guerra civil, que desestabilizaram o sistema político e as instituições ao longo de toda a história do país.

Ao menos aparentemente, as tropas têm sido bem recebidas. Os militares brasileiros que chegaram no Haiti em maio contam que alguns até agora não precisaram dar sequer um tiro. “Isso é o que nos conforta e motiva a continuar trabalhando duro”, ressalta o comandante brasileiro, coronel Fioravante.

Ações conhecidas como Aciso – Ações Civico Sociais – também ajudam. A cada dois dias, em média, ocorre distribuição de água e alimentos, atividades de recreação para as crianças e, algumas vezes, também orientações de higiene bucal.

“A gente já percebeu desde o início da missão que depois dessas atividades de Aciso a gente passa na rua e a população brinca, pede mais alguma atividade, distribuição de alimento, água, brincadeira, e isso é bom pra gente”, explica o tenente Johnestown Haullinson, responsável pela organização do Aciso que visitamos no segundo dia da viagem.

Outras atividades também são desenvolvidas pela divisão de assuntos civis, responsável pela ligação entre as autoridades do governo, os organismos internacionais, o braço armado da missão e a população haitiana. “Nós estamos formando líderes comunitários para que eles possam atuar em situações de emergência aqui dentro do país deles, como enchentes", conta o tenente-coronel Eugênio Pecelli.

O general Augusto Heleno, primeiro force commander da Minustah, conta que no início a missão tinha um caráter mais rígido, de imposição de paz, "devido à situação de defesa encarniçada das gangues dentro das favelas principais, tanto de Bel Air, quanto de Citè Militaire, quanto de Citè Soleil".

"Hoje o perfil é muito mais humanitário, isso melhorou muito a nossa chegada perto da população", complementa o general.

“No início, [o relacionamento] não foi muito bom; agora é diferente, porque a Minustah traz a paz aqui; no início não tinha paz. Quando a Minustah chegou, todo dia tinha tiro, era normal o conflito entre os bandidos”, resume Jean Baptiste Jean Denis, intérprete da ONU, que trabalha no batalhão brasileiro.

Chama a atenção a quantidade de pessoas que, como Jean, aprenderam ou estão aprendendo aos poucos o português. Muitos com os mesmos objetivos: conseguir um emprego e vir para o Brasil estudar.

Só no recém criado Centro de Estudos Brasileiros – inaugurado em fevereiro deste ano -, 70 haitianos já fizeram o primeiro nível do curso de português. São alunos geralmente de baixa renda, mas que sabem falar além do francês e do creole, língua oficial, algum outro idioma, como o espanhol.

“Hoje você tem um país altamente internacionalizado, com gente de todo o mundo, e quanto mais idiomas você fala, mais possibilidades de contato, de interação e provavelmente de emprego”, explica o coordenador do centro, José Renato Baptista. “Nós temos também demandas de estudantes que fazem graduação aqui ou desejam fazer uma graduação no Brasil”, completa.

Mas a Minustah está longe de ser uma unanimidade. A resistência de setores da própria Igreja Católica, de organizações da sociedade civil e de partidos como o Kombat é uma coisa que o próprio embaixador brasileiro, Igor Kipman, admite.

Os motivos para a resistência são vários. Organizações sociais consideram as tropas como de ocupação, e não de paz, o que viola a soberania do Haiti. Em um comunicado recente, 20 entidades disseram que seria melhor que o dinheiro da Minustah fosse aplicado em projetos de reconstrução do país. Elas dizem, também, que as tropas massacram os movimentos sociais.

Só que ainda não existe data para a saída das tropas internacionais que estão no Haiti. De acordo com o segundo homem no comando da Minustah, o brasileiro Luiz Carlos da Costa, a previsão é de que o perfil atual da missão seja mantido até 2011 pelo menos. "É prematuro no momento mudar o nosso perfil", diz.

26 maio 2010

23 de setembro de 2008: acredite, você está no Caribe

Início da tarde . Da janela do avião, casas sem teto e o mar sem azul de tanto engolir rios de lama e esgoto. O encontro das águas no país mais miserável do novo continente leva a uma completa revisão de conceitos. Não parece o Caribe. O Haiti choca antes mesmo da aterrisagem.

“Eu costumo dizer que a gente acha que tem um determinado problema no Brasil, e depois que passa por aqui, vê as áreas degradadas, uma população num estado de miséria na nossa área de operações, com certeza esses valores são reavaliados e aqueles problemas que a gente achava que tinha no Brasil não são problemas”, reflete o comandante do batalhão brasileiro na Minustah, coronel Pedro Antonio Fioravante.

O primeiro item da programação da recém chegada comitiva do Ministério da Defesa é uma visita a Citè Soleil. O bairro, até o ano passado considerado o mais violento do mundo, foi o último a ser "pacificado" pelas forças da Minustah. Ao contrário do que acontece no Brasil, os pobres ficam à beira-mar, a região menos valorizada, por ser onde alaga quando chove muito. É assim que várias partes estavam quando passamos, uns 20 dias depois do último furacão.

“O que você tem ali é uma população que precisa de desenvolvimento, precisa de emprego, das coisas normais que todo mundo quer, que é o emprego, a escola, a moradia, alimentação, saúde, isso é o que todo mundo quer, em qualquer lugar do mundo, e que ali não tem condições, com um índice de desemprego altíssimo”, diz o comandante das forças da missão de paz, general Carlos Alberto dos Santos Cruz.

Hoje já é possível entrar em Soleil sem capacete ou colete a prova de balas, coisa impensável um ano e meio atrás, quando os soldados eram recebidos a bala pelas gangues armadas. Mas ainda não podemos dispensar a escolta armada com fuzis, nem nos afastar muito, pois estamos perto do final da tarde e ficar para trás significa não ter como voltar depois, pois não há transporte nem energia elétrica. À noite, se instala o breu.

O local é a tradução da falta de condições de higiene no país em que apenas 30% da população têm acesso a saneamento básico e cerca de 54%, a água tratada, segundo a ONU. As pessoas se lavam e comem com água que se mistura facilmente ao esgoto que sai das casas. O relacionamento com o lixo é tão indigno quanto, pois só agora um serviço mínimo de coleta está voltando a funcionar, pelo que os soldados contam.

Considerado o país mais pobre e menos desenvolvido das Américas pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), o Haiti tem um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,529 numa escala que vai de 0 a 1 - o do Brasil, por exemplo, é 0,8. A população é estimada em 9,3 milhões de pessoas, 65% vivendo abaixo da linha de pobreza e 53,9%, com menos de US$ 1 por dia.

O Produto Interno Bruto per capita é de US$ 1.635 – contra US$ 8.195 no Brasil, por exemplo. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a expectativa de vida ao nascer é de 59 anos e a taxa de mortalidade em crianças com menos de cinco anos chega aos 105 por mil nascidos vivos, ou seja, mais de 10%.

“Esse é um país que precisa de tudo”, resume a embaixatriz brasileira em Porto Príncipe, capital haitiana, Roseana Kipman. E não bastassem os indicadores socioeconômicos, o país ainda está na rota de diversos furacões – em torno de 20 por ano, entre os meses de julho e outubro.

“E esse povo que dorme em casas que não têm janela, mal têm uma porta, quando a água entra e leva o barraco... não é uma cidade, isso não é uma cidade, e não se pode falar em favelas, tem algumas casas no meio de coisa nenhuma”, lamenta a embaixatriz.

Toda essa carência pode ser sentida pelas ruas de Citè Soleil. Diferentes em tudo, na cor da pele especialmente, nós, estrangeiros, chamamos a atenção especialmente das crianças. Elas não hesitam em vir para junto de nós. “Hey you”, dizem para chamar a atenção. Nos cercam, querem saber quem somos, de onde somos, nossos nomes, se temos filhos, os nomes deles. E não falta o pedido de comida, dinheiro, socorro.

Revivendo experiências

Há alguns dias lembrei uma viagem feita ao Haiti. Uma grande experiência. Não em relação ao tempo que fiquei por lá, mas pelas marcas que deixou em mim. Junto, infelizmente, uma frustração. Uma daquelas que vira e mexe acontecem no trabalho. Afinal, nem sempre o que produzimos vai ao ar, ou é publicado. Por isso resolvi usar esse blog há tanto adormecido para algo realmente útil.

Na época da viagem, final de setembro de 2008, o Haiti havia acabado de passar por quatro furacões. O Conselho de Segurança da ONU estava para aprovar a prorrogação da missão de paz na época ainda chefiada pelo Brasil, a Minustah. E o brasileiro Luiz Carlos da Costa, funcionário de carreira da ONU, segundo na chefia civil da missão, ainda era vivo, e ainda falava com esperança sobre um futuro para o Haiti, que poderia - ainda pode - ser construído com o auxílio de outros países.

Fui numa comitiva do Ministério da Defesa, representando a Agência Brasil, junto com um fotógrafo. Também estavam na comissão um repórter e um cinegrafista da TV Brasil, uma repórter da Agência Lusa e uma repórter e um cinegrafista da Rede Globo.

Difícil esquecer a primeira passagem por Citè Soleil. Ou a ida a um Aciso em Porto Príncipe, com a distribuição não só de água ou alimentos, mas também de kits para higiene bucal e principalmente, carinho para crianças tão carentes de tudo, absolutamente tudo.

O que posto agora, deveria ter ido ao ar no máximo até depois das eleições municipais de 2008 na Agência Brasil. Contratempos impediram a publicação dentro do prazo. Depois não fazia mais sentido, jornalisticamente falando. Por isso vou publicando aqui os textos que iriam ao ar. Infelizmente não poderei colocar também os áudios coletados e as fotografias feitas pelo Roosewelt, grande fotógrafo.

Quem tiver paciência para a leitura, aproveite. Mas lembre: nem todos que tinham cargos continuam por lá. A maioria, não, afinal, o contingente militar é trocado a cada seis meses.