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31 maio 2010

Cozinha do Inferno

No segundo dia no Haiti, 24 de setembro, fomos conhecer um local ainda mais caótico e chocante do que Citè Soleil, que os soldados brasileiros chamam de "cozinha do inferno". É um mercado informal, que ocupa não só calçadas, mas também as ruas, onde pessoas confundem-se com mercadorias e carros.

"Cozinha" porque o que mais se vende (no meio de uma infinidade de coisas que vão desde remédios até cadernos escolares e malas para viagem) é comida, incluindo os biscoitos de argila, que eles comem na falta de outra coisa menos indigna. Dizem que é nutritivo... "Do inferno" pelo caos de gente, carros, cestos, banquinhas, lama, esgoto, lixo. E nós com colete a prova de balas e capacete.

Existe também um mercado público construído pelo governo da Venezuela, que custou quase US$ 2 milhões e tinha sido inaugurado nove dias antes. Enquanto centenas de ambulantes ocupavam o espaço, parcialmente alagado (difícil dizer se por água mesmo, por esgoto, ou os dois misturados), em frente ao mercado, lá dentro nenhum dos boxes estava ocupado.

As vendedoras contaram que o aluguel do espaço é tão caro, que só quem tem uma grande quantidade de mercadoria para vender consegue pagar. Assim, sempre que tentam entrar lá, são expulsas a pancadas pelos homens da Polícia Nacional.

São inúmeras as violações dos direitos humanos. Mas o general Santos Cruz, force commander da Minustah, é taxativo: "A missão aqui não tem nenhuma condição de promover desenvolvimento, a não ser criar um clima de estabilidade e favorecer o governo".

Santos Cruz argumenta que a ação da tropas é apenas uma das ferramentas para garantir os direitos do povo haitiano. "Quando você controla, leva condição para o governo chegar lá, para a polícia chegar lá, você participa do trabalho policial, põe pressão em cima desse pessoal, é pra tudo isso, evitar que as pessoas sejam roubadas, sejam sequestradas, estupradas, assassinadas, [permitir] que as escolas funcionem. Isso é direitos humanos na prática".

De acordo com o general Augusto Heleno¹, o primeiro comandante das tropas da Minustah, em 2004, mais do que a garantia do ambiente seguro, existe uma prioridade para ações humanitárias, quando necessário. Ele lembra da opção feita no ano em que ele chegou, de se enviar as tropas para a ajuda humanitária em Gonaíves, o que acabou possibilitando o fortalecimento das gangues na capital do país, Bel Air, Citè Soleil e Citè Militaire.

"Hoje a nossa presença efetiva com pontos fortes dentro dessas favelas impede que aquela situação [de predominância das gangues] seja retomada, mas de qualquer maneira, quando a gente deixa de patrulhar, de estar presente, fatalmente nós vamos ter um agravamento na situação de segurança, aumento de seqüestros, de roubos de veículos; mas eu digo que entre trabalhar na ação humanitária e trabalhar na repressão ao crime, primeiro vamos para a ação humanitária e depois vamos cuidar do crime".

Uma das coisas que têm sido feitas pela ONU, de acordo com o segundo homem no comando da missão, o brasileiro Luiz Carlos da Costa, uma das prioridades, aliás, é a reestruturação da Polícia Nacional do Haiti (PNH), a formação de uma polícia estruturada, honesta, profissional. Mais ainda precisam chegar nos 14 mil homens, número considerado suficiente no momento.

No entanto, a missão não tem um projeto de desenvolvimento, de reconstrução ou mesmo de reflorestamento - hoje em dia o Haiti tem 2% de cobertura vegetal. E às vezes a população não consegue, segundo palavra de Costa, enxergar que nem tudo depende dos soldados estrangeiros.

“Nós não temos um papel no desenvolvimento do país, nos investimentos econômicos, a população não entende isso, eles perguntam aos nossos soldados, então nós precisamos fazer um melhor trabalho de explicar o que nós não somos, o papel dos outros, que podem modificar, trazer uma melhora para a sociedade”.
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1 - Tivemos oportunidade de entrevistar o general Augusto Heleno no retorno do Haiti. Tivemos uma escala técnica em Manaus, para reabastecer e deixar os que ficavam por lá, alguns oficiais e a equipe da Rede Globo. Ele fez uma visita à aeronave, um C-99 da FAB e fez a gentileza de conversar com os repórteres, apesar do pouco tempo disponível e do barulho das turbinas logo ao lado.

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