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23 janeiro 2006

Um sonho de olhos azuis

Quatro da manhã e o despertador toca. “Nossa, mas já?” Corre, toma um banho, engole qualquer coisa. A festinha de carnaval da empresa foi boa. Chegou em casa já às 2h, dormiu muito pouco esta noite. Mas agora não é hora de pensar em nada ligado ao trabalho, nem mesmo no Robertinho, aquele gerente gato da loja no Iguatemi. É necessário estar no aeroporto até às 5h para o check-in. “Essa época é complicado viajar... tem gente demais”, pensa enquanto engole duas bolachas cream-cracker.

As ruas estão vazias, os sinais ainda desligados e o percurso é até que rápido. “Ainda bem que eu consegui esse vôo bem cedinho, pelo menos do trânsito estou livre”. Pudera, a cidade está vazia nesses dias. Quase todos vão para a praia ainda na quinta à noite. “Só nós, escravos de multinacional, é que temos que ficar trabalhando em plena sexta-feira de carnaval. Isso tem que valer a pena”.

Desde a semana anterior, pelo menos, ela só pensava na viagem à Bahia. Foi programada de última hora, pois a chefe só confirmou a liberação na quinta e na sexta depois do carnaval nos últimos instantes. “Se tivesse que voltar na quarta-feira de cinzas não valeria a pena...”, era o que dizia sempre que perguntavam por que não se contentava com os quatro dias normais do feriado. Ao menos havia conseguido o que queria. Estava embarcando para Salvador, ia ficar na casa de um amigo do primo de sua mãe, que também era cunhado da sua tia.

“Atenção tripulação, preparar para aterrissagem!”, dizia a voz do comandante do avião. Mal conseguia acreditar, estava, enfim, na capital baiana! Não via a hora de chegar em casa, trocar de roupa e ir para a praia. Só queria saber de sol, cerveja, música e muitos negões para beijar na boca e contar para as amigas todas. “Mooooorrraaammm de inveja!”

A praia estava linda! O mar era de um azul simplesmente inconcebível, que se encontrava com o azul do céu na linha do horizonte como nunca tinha visto antes. E gente, muita gente na rua. A cidade inteira era uma festa só. As músicas se misturavam numa sinfonia de sons perfeita. Não precisava entender o que era cantado em cada esquina, o ritmo era o suficiente, alto o bastante, forte o bastante, onipresente o suficiente para amarrá-la e a levar com ele para onde quer que fosse.

Apesar da muvuca que imperava em todos os lugares, não foi tão difícil encontrar o endereço do amigo do primo de sua mãe e cunhado da sua tia. Não era um apartamento luxuoso, talvez até mais simples do que esperava, mas não era preciso mais do que tinha ali. Eram 15 pessoas hospedadas no mesmo lugar. “Tudo bem, não tem problema nenhum... o que eu menos vou fazer é ficar em casa... só preciso de um cantinho para descansar de vez em quando e um banheiro para tomar banho”. Nem adiantava esperar mais que isso.

“Esse ano eu vou me acabar! Quero dançar todas, beber todas e mais algumas... vou chutar o pau da barraca!”. E foi com esse espírito que deixou a mala num cantinho de um dos dois quartos e saiu.

Por ter decidido a viagem muito em cima, não conseguiu comprar abadá para nenhum dos blocos. A saída era acompanhar o carnaval na pipoca mesmo. Não era a melhor opção, mas era a única. Estava na Barra, bem próxima ao Farol, quando passava o Camaleão, bloco do Chiclete. “Chiiiicleeeeeteeeeee! Oba! Oba!”. No delírio da multidão, sob o sol ainda escaldante, apesar de já ser final de tarde, eis que ela o vê.

Não é comum ver pessoas mascaradas no carnaval soteropolitano, hoje em dia. Mas era assim que ele estava. Apesar da máscara de monstrinho, conseguia ver os olhos dele. “Está olhando para mim...”. Olhos tão azuis quanto o céu às 5h da tarde, sem nuvens. Lindos olhos, que não saíam da sua imaginação durante o sono todo. Não conseguira sequer chegar próximo ao rapaz. Era gente demais, e ele estava dentro do bloco, dava para reconhecer a mortalha.

No dia seguinte, procurou saber qual o percurso do Camaleão e foi atrás. Era difícil acompanhar o trajeto todo do bloco, por causa da multidão, mas ela tinha certeza de que tanto esforço valeria a pena. Não se importou com os pisões no seu pé, as puxadas no cabelo, os banhos de qualquer bebida que estivesse sendo consumida por ali. Sentia que precisava ver novamente aqueles olhos cor do mar. Estava praticamente hipnotizada pela visão do dia anterior.

O percurso já estava na segunda metade quando o viu novamente. Usava a mesma máscara de monstrinho, que só deixava ver os olhos azuis. Ele também a viu e, mais uma vez, parecia devorá-la só com o olhar, guloso, envolvente. Já tinha virado questão de necessidade conhecer melhor aquele sujeito. Mais uma vez, no entanto, o movimento semi-orgânico da multidão, a massa humana a qual se movia como se fosse uma coisa só não permitiu a aproximação.
Ela não conseguia ver mais nada. Ninguém mais era interessante o suficiente. Música nenhuma era animada o bastante. Qualquer entorpecente, álcool, lança-perfume ou qualquer outro, conseguia fazê-la esquecer aquele par de olhos celestes. Não havia mais outra motivação que não encontrá-lo mais uma vez, nem que fosse para uma noite apenas, um beijo somente!

Já chegara a segunda-feira. Ela continuaria na cidade até o domingo seguinte, mas nada poderia garantir que ele também ficaria. Talvez tivesse de voltar para São Paulo, ou Porto Alegre, ou Brasília, ou até Nova Iorque, Munique, Paris! Todas as possibilidades pareciam verossímeis. Ela iria até os piores becos de Salvador. Não podia sair dali sem saber quem era o seu príncipe com rosto de monstrinho.

Quem passava, agora, era o bloco da Ivete. Chegava, também, o da banda Babado Novo. Mas nada disso importava, faltavam aqueles olhos. “Então vem... que eu conto os dias, conto as horas pra te ver. Eu não consigo te esquecer...”. aquela música ao fundo, onde será que ele anda? “Ei, você!”, ouviu uma voz chamar ao fundo. Era ele! Estava bem ao seu lado, com a máscara cobrindo o rosto todo, mas reconheceu pelos olhos azul-anil. Não teve tempo para falar nada. Apenas sentiu seus braços a envolvendo. E que braços! Um abraço gostoso... Tirou a máscara, e que rosto lindo! Não tinha palavras para descrever o quanto. Um movimento simultâneo dos dois, quase ensaiado, levando a um beijo inevitável.

Triiiiiiiimmmm!! Era o telefone. “Alô! É da casa da Mônica?”. “Mônica? Não, minha senhora. Aqui não tem Mônica alguma”. O relógio já marcava 8h da manhã. “Droga, mais um pouco e eu me atraso pro trabalho. Plantão em pleno carnaval é foda...”

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