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03 abril 2005

Maus tratos

“Mais uma briga na casa dos Silva. Dessa vez, a filha saiu de casa batendo porta. O pai quase quebra toda a louça. A mãe, coitada, pega a vassoura, limpa a bagunça e sai. Tem de ir comprar louças novas para repor as perdidas.”
- Que tal, gostaram do início da historinha?
- Peraí. Esse não é pra ser um filme com indicação etária livre? Com todas essas cenas de violência, não vão aceitar! Vão querer pelo menos 18 anos! Onde já se viu me maltratar tanto assim na frente do público!
- Eu mesma, nunca aceitaria que meus filhinhos vissem cenas de morte. Dessa forma, eles nunca iriam aceitar permanecer em uma casa de família, só por medo!
- Mas gente...
- Sem essa de ‘mas’, seu computador. Concordo com a Porta e a Xícara. Eu mesmo não atuo nesse filme de jeito nenhum.
- Mas eu só tô querendo demonstrar a realidade...
- Não precisa exagerar nesse seu realismo. Eu me recuso a filmar esse tipo de cena.
- Só porque passam horas batendo no seu amiguinho Teclado você quer descontar na gente? Só falta querer mostrar a Televisão apanhando também.
- Ei! Nem inventa isso! Eu tô muito bem aqui quietinha, e já tinha avisado que não topava participar de filme nenhum.
- Ô gente. Eu disse que era um filme de conscientização em relação aos maus tratos contra nós, digníssimos utensílios domésticos.
- Mesmo assim, não esperávamos que fosse tão chocante. Já não basta o que apanhamos na vida real? Esse povo acha que somos simples coisas, das quais podem dispor a torto e a direito.
- Mas é por isso mesmo que eu sugeri o filme! Uma forma de revolta, de contestação!
- Olha seu Computador, eu até entendo o seu objetivo. Mas não dá, não. Se é para sofrermos mais o que já sofremos, a gente não concorda. Eu sei que às vezes posso parecer meio paradona, estou sempre ali na cozinha ou na sala, nos quartos e até no banheiro,vendo todos passarem, deixando a luz e o vento entrarem através de mim, quase não sofro mesmo. Isso eu admito. Mas não vou conseguir ver meus companheiros sofrendo duas vezes. Acho melhor você desistir.
- Falou e disse dona Janela! Gente, vamos nessa que eu ainda tenho muito trabalho a fazer. Hoje tem festa aqui em casa e o chão ta uma poeira só! Tenho muita coisa a varrer.
- Tchau seu PC. Valeu pela intenção!
E assim, mais uma vez, como sempre (ou quase sempre) acontece, uma boa idéia foi abortada pela falta de espírito coletivo dos trabalhadores da casa. O Computador, desanimado, começou a travar. Como seu dono não entendia o que estava acontecendo, trocou-o por um novo, bem mais veloz e bem menos solidário com a dor dos outros. Agora é esperar, para que mais alguém se compadeça dos demais e tenha uma boa idéia para tentar ajudá-los.

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